Por meio do substitutivo ao projeto de lei sobre a inteligência artificial, foi atribuído à Autoridade Competente do Marco Legal da Inteligência Artificial (IA) funções regulatórias similares às das agências reguladoras, entre elas a de expedir regulamentos sobre temas relativos à IA (artigo 31 parágrafo único, VI, do Substitutivo).  

Com esse poder normativo estabelece-se uma regulação transversal que gera um desafio para a entidade: normatizar o uso da IA em diferentes setores, cada um com suas peculiaridades, inclusive para a administração pública.

As contratações públicas são uma das formas de atuação estatal que poderá ser objeto de grande transformação pelas IAs. Ainda assim, o tópico não foi alvo de explanações pela Lei 14.133/21, a nova Lei de Licitações.

Possivelmente, nesse campo, um das atuações da IA seria o de amenizar determinadas assimetrias informacionais que existem entre administrador e mercado durante a modelagem de editais de licitação.  

Por exemplo, o caso das pesquisas de preços, elemento essencial no planejamento dos contratos com o poder público (artigos 23 e 82, §2º, da LGL). A qualidade dos levantamentos feitos por agentes públicos quando não apresentam a amplitude necessária para se aferir valores de mercado razoáveis para a orçamentação das licitações tem sido questionada pelo Tribunal de Contas da União (TCU). 

A IA pode desempenhar um papel relevante nessa dinâmica, facilitando a reunião de dados sobre preços de contratações vis-à-vis suas respectivas peculiaridades, inclusive geográficas. Também tende a favorecer o trabalho dos gestores públicos e mitigar o risco de sua condenação por debilidades nesse iter procedimental. 

Ainda, pode-se citar outro exemplo: a possibilidade do uso da IA para coleta e o processamento de informações pretéritas sobre contratações executadas por determinados particulares.

O destaque desse assunto se dá na medida em que o artigo 36, §3º, da Lei de Licitações determina que o histórico dos licitantes em outros contratos será utilizado para fins de pontuação em licitações do tipo técnica e preço – algo que, na prática, poderá ser mais facilmente levado a cabo a partir de informações levantadas e examinadas pela IA. 

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Também há a possibilidade de elaboração de catálogos eletrônicos de padronização, sistema que presta-se a criação de modelos de itens a serem adquiridos pela administração pública (artigos 6º, LV, e 19, II, da Lei de Licitações).

Nesse particular, a IA pode colaborar para reunir elementos que melhor atendam na criação de referenciais de objetos a serem seguidos nas contratações públicas, inclusive a partir de experiências passadas que tenham sido exitosas.  

Assim como esse, outros tópicos são passíveis de serem otimizados pela tecnologia. Na outra ponta, há o risco de essas análises serem pouco transparentes e terminarem por cercear a compreensão e participação de possíveis licitantes, a violar o caráter competitivo do certame (artigo 5º da Lei de Licitações).

Do mesmo modo, o substitutivo confere alto grau de importância à transparência e aos mecanismos de contestação dos particulares, conforme asseguram seus artigos 3º, VIII, 5º, III, 8º, IV e 9º, §2º. 

Nesse contexto, a grande dificuldade a ser enfrentada pela autoridade competente será regulamentar os diferenciais usos das IAs em contratações públicas de modo a, de um lado, explorar esses potenciais e, de outro, garantir transparência e possibilidades de contestação aos interessados.  

Para tal propósito, será necessário aprofundar o diálogo com outros órgãos e entes públicos, assim como os particulares, para que o uso e o desenvolvimento da IA sejam cada vez mais condizentes com as necessidades do Poder Público e ao mesmo tempo responsivos para o setor privado.

Fonte: Jota

Autor(a): Felipe Salathé