O uso da tecnologia de Inteligência Artificial (IA) na Justiça em todo o mundo tem gerado diferentes gradações de soluções. A mais integral vem da China, onde há 4 mil tribunais, 46 mil juízes e 110 mil advogados para atender uma população de 1,4 bilhão de pessoas, com o incremento da litigiosidade ano a ano. Desde 2016, o país vem desenvolvendo um conceito de “Tribunal Inteligente”¹.
De acordo com a Suprema Corte de Pequim, em decisão deste ano, os magistrados devem consultar a Inteligência Artificial em todos os casos e, quando forem contra a recomendação da tecnologia, devem apresentar justificativa por escrito. O país entende que a IA está melhorando o sistema judicial ao alertar para “erros humanos” em decisões. A tecnologia de IA na China pode quase tudo, até alterar veredictos que podem “ser contaminados por erro humano”.
A incorporação da IA ao Judiciário foi acelerada pela pandemia da Covid-19 e a necessidade de digitalização, mas teve sua diretriz definida no Plano Quinzenal do Congresso Nacional Popular do ano passado, que definiu que a reforma judicial seria aprofundada pela tecnologia e o presidente do Supremo Tribunal Popular chinês, Zhou Qiang tem nos tribunais inteligentes uma de suas prioridades. O sistema do “Tribunal Inteligente” instalou plataforma on-line para o público em massa para agilizar a tramitação e incluir dados para agilizar o sistema de machine learning, propiciando relatórios estatísticos e preditivos. Segundo a China, o sistema reduziu em um terço as horas de trabalho dos magistrados, o tempo do processo é em média de 40 dias e economizou US$ 45 bilhões, no período de 2019 a 2021.
É uma visão bem diferenciada da maioria dos países ocidentais, que fazem restrições ao viés algorítmico, temendo que gerem distorções, caso da Comissão Europeia, que em 2021 regulamentou o uso da IA com base em direitos fundamentais. Uma das inovações veio com a criação Comissão Europeia para Eficiência da Justiça (CEPEJ)1, que definiu como plano de ação de 2022 a 2025, ” acompanhar os Estados e os tribunais numa transição bem-sucedida para a digitalização da justiça de acordo com as normas europeias e em particular com o artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, dispositivo que assegura que toda ” pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada de uma forma justa e equitativa, num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial. Qualquer pessoa acusada presume-se inocente até prova em contrário. Deve ser informada o mais rápido possível da acusação contra ela e poder preparar a sua defesa. Tem direito a ser representada por um advogado pago pelo Estado se não tiver meios para pagar um”.
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A CEPEJ reconhece que a passagem dos arquivos judiciais em papel para o digital é fundamental. No Brasil, nas últimas décadas nos tribunais têm buscado realizar essa mudança do físico para o digitalizado. É o caso do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) , que iniciou em 2006 a implantação do processo eletrônico e desde 2015 não recebe mais ação em papel.2
A Comissão Europeia, que une Justiça e avanços tecnológicos, sugere seis pontos principais que devem ser observados, entre elas que as tecnologias escolhidas pelos Estados e Judiciários sejam mais eficientes, acessíveis e imparciais. Sugere, ainda, que os tribunais tenham um pipeline para monitorar e gerenciar o fluxo das ações e evitar a morosidade na tramitação processual, podendo acompanhar o volume e produtividade dos feitos.
Os europeus defendem uma justiça colaborativa, na qual as ferramentas tecnológicas devem interconectar todos os atores judiciais-magistrados, promotores, advogados e jurisdicionados. Para tanto, é necessário que a ferramenta seja de fácil uso e eficiente. Enfatizam também que haja uma adequação do papel dos juízes e promotores ao ambiente digital, sem que isso represente a substituição do juiz, como sugere o modelo chinês.
Para a União Europeia, é importante também uma justiça centrada nas pessoas e que essas possam fazer uso pleno das tecnologias disponíveis, como condição de acesso ampliado da justiça, recebendo todo apoio no ambiente digital. Por último, o CEPEJ recomenda aumentar a visibilidade e compreensão dos resultados no âmbito judicial e garantir a transparência das ferramentas tecnológicas.
Para os dois lados, sejam chineses ou europeus, fica a pergunta se a IA está criando uma nova forma de fazer Justiça ou se constitui um desafio para que os designs e os algoritmos correspondam à expectativa de uma IA legal com efetivo potencial para atender às demandas dos operadores do direito, do jurisdicionado e dos Estados. O Brasil segue o caminho do meio, introduzindo novas tecnologias em sua Justiça, seja de IA, big data, blockchain, etc.,sem que se perca a perspectiva e a relevância dos direitos fundamentais, que possam ser comprometidos com julgamentos automatizados, sem salvaguardas.
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1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui.